domingo, 20 de maio de 2012

Como ser


            Sou muito mais por dentro que por fora. Meu interior não corresponde ao meu exterior. Eu não expresso aquilo que sou intimamente. Meus atos não demostram o que sinto. Sou alguém por dentro, mas outro por fora – Eu sou o que não sou. Por dentro eu ajo de maneira diferente daquela que eu faço no mundo concreto. Como se não bastasse, por minha falta de clareza nos atos, por minha confusão interior, as pessoas sempre me interpretam de modo diferente daquele que fui, lembrando que eu mesmo já havia agido de maneira diferente da que eu sou em meu íntimo. Portanto, além de existirem dois ‘’eu’s’’, há mais um, que nunca vi, que é mais dos outros do que meu, que me é indiferente, e que nunca é o mesmo. Existe tanto de mim no mundo, mas eu mesmo não existo!
            Eu penso que sei quem sou para dentro de mim. Não consigo encontrar minha essência, ou talvez a saiba, mas não a admita, porque simplesmente não gostaria de sê-la.
            É como se a matéria fosse incapaz de transmitir aquilo que, de fato, eu sou! Eu não vivo nada para saber o que eu faço de verdade. Tudo fica apenas na ideia transcendental. É insuportável! Sempre me perco em meus gestos, sinto-me cada vez mais frio. Falta-me viver por fora!
            Eu sou o que não sou. Ou será que a verdade é que não sou o que sou? Só sei que para os outros eu pareço ser muito mais diferente daquilo que acabei sendo.
            Estou perdido.

domingo, 8 de abril de 2012

Vida, viva, viver outra vez


Hoje as pessoas na rua estavam feias. Elas pareciam cansadas, deprimidas, improdutivas, incapazes, passageiras, abundantes, expansivas, medrosas, iguais, invejosas, ambiciosas, etc., etc., etc., etc. Pensei que fosse o tempo, olhei pro céu e vi que as nuvens pareciam aborrecidas, iam chorar.
Observei o céu como sendo uma coisa divina, mas surgiu na minha frente, ali no ônibus, uma pessoa feia, assim como grande parte das pessoas existentes na minha cidade feia; cidade que tem filhos de uma única e grande coisa: a pobreza, esta pobreza que não é material, esta pobreza que tanto me dói, a pobreza da alma. Isso não significa dizer que eu estou fora desse bando, pelo contrário, eu me encontro redondamente inserida no mais profundo estado de pobreza: a solidão.
Porém, retomemos a pessoa que me surgia no ônibus – um homem –, este me pareceu menos ambicioso, menos malicioso, menos dependente das coisas que nos consomem, desse estado empobrecido, desse país de merda, desse continente abandonado e visado por “grandões”, que se sentem donos do mundo; e deste planeta condenado a sofrer com as coisas ruins que eu produzo e que você acredita, mas que todos nós acatamos de bom grado.
Pois bem, este homem, que nem era velho e nem era novo, me pareceu bastante comum, mas com uma diferença: em seu olhar o que reinava era a ingenuidade, não um símbolo do cifrão, que nós brasileiros usamos para representar este pedaço de papel em formato retangular, que vale muito mais que um sentimento verdadeiro, no qual recebe o nome de dinheiro.
E aí eu fiquei a me perguntar: “O que será meu Deus, que este homenzinho, que volta de uma rotina exaustiva de trabalho, traz no peito pra se manter exclusivamente ingênuo nesse mundo de deus-nos-acuda?”; enquanto me questionava, o homem ao meu lado, tentava buscar um jeito em que as sacolas, presas em seus dedos se desprendessem sem esbarrar em mim, uma desconhecida feia e mal-humorada, assim como aquele dia. Tudo aquilo me parecia vida, porque estando ao lado daquele moço eu sentia que nem tudo estava perdido, haveria então “salvação” para este mundo.
A dúvida de “qual era o segredo do homem” só aumentava, foi quando dei por mim, lendo desconcentrada a página de um livro. Eu já estava perto de casa, tristemente teria que descer do ônibus e nunca mais me sentir viva, como quando o homem castigado pelo mundo sentou ao meu lado e me mostrou sem dizer nada, que a vida é muito maior do que eu pensava!

domingo, 11 de março de 2012

Queira enxergar

Quero resgatar algo; ou ter o que nunca tive. Quero entender o que não sou e o motivo pelo qual quero escrever. Gostaria muito de não querer demais. Quero apenas ser. Queria viver correndo – mas não quero me cansar. Quero encontrar motivo. Dá-me um motivo, eu suplico! Quero ser rasgado. Queria estraçalhar algo. Mas não quero ser triste. Então deixa a música tocar. Deixa viver, deixa contar, por favor... Deixa ser, deixa ser, deixa chorar, deixa andar. Deixar amar, deixa pegar, deixa cozer, deixa esquentar, mas não deixa apagar, pois se apagar tem que voltar ao início e não quero voltar ao início; assim tá melhor do que se fosse daquele outro jeito. Mas deixa ser... Deixa sorrir de verdade, deixa sorrir sincero. Permite a quem gosta. Deixa pensar bastante, já que não deixa fazer. Deixa olhar para trás, já que o futuro tá ruim de acontecer. Mas se não deixar, eu enlouqueço. Então deixa ser, caramba, pois já é! Vê! Deixa querer! Queira deixar. Eu quero e vou

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Vina

Vina era o apelido que recebia o rapaz do pequeno apartamento em frente ao meu. Na verdade, ele atendia pelo nome de Vinícius. O Vina era um rapaz alto, magro, loiro, olhos verdes e um sorriso sedutor.  Seus lábios eram como dois pêssegos, pareciam macios e delicados. Ele tinha uma namorada chamada por todos de Nicinha, mas batizada com o nome de Eunice. A Nicinha não era feia, tinha olhos grandes e cansados, como o dia de uma rotina pesada de trabalho. Sendo bem sincera... Ela não era de se jogar fora!
O Vina sempre saia de casa pela manhã com o seu saxofone embaixo do braço, voltava à noite, mas na maioria das vezes nem voltava. No início eu observava muito a vida do garoto, depois arrumei um emprego e cai pra rua também. Nós nos encontrávamos vez ou outra nos corredores do prédio onde morávamos. O prédio era situado numa zona periférica do Rio, algo bastante perigoso pra hoje em dia, porém nós vivemos por lá no ano de 87.
Como já foi citado, eu arrumei um emprego, este era no café de Ipanema, lá o ambiente era sofisticado, visitado por muitos “barões”, dominadores daquela outra zona do Rio, totalmente diferente daquela que eu morava. Nas tardes de trabalho, enquanto eu arrumava o balcão e a Dulce servia café aos velhos “mandões”, era possível ver o Vina passar com o seu inseparável instrumento, para tocar ali no apartamento do maior ídolo da época: o Cazuza.
Durante a noite, depois do trabalho, eu topava com o Vina no metrô, nós conversávamos pouco, porque ele nunca gostou de papear comigo; talvez ele fosse medroso por conta da namorada, ou sei lá o quê.
Lá no prédio também tinha o maluco do “Dream”, pode parecer estranho, mas aquele louco tinha o mesmo nome do Vina – Vinícius –, porém ele preferia ser chamado assim, pois fazia alusão ao seu idioma preferido, além de vê-lo sempre falando em viajar pra Nova Iorque, o que era impossível pra um vendedor de batatas daquela época (ou até mesmo hoje em dia).
Vina e Dream viviam juntos, fumavam uns baseados, saiam pra curtir as noites cariocas, conversavam muito, dormiam fora, passeavam, ouviam música, até trabalharam no mesmo local, mais isso foi antes da mãe do Dream ficar cega e ter que ir trabalhar com o filho na feira, tirando assim o lugar que o Vina ficava.
No apartamento que o Vina morava, também tinha o seu tio – que eu não me recordo o nome –, um senhor que consertava televisores e rádios e tinha uma mania muito estranha, para dormir ele precisava ligar todos os aparelhos quebrados que estavam sob a mesa para consertar, só assim ele cobria-se todo e dormia profundamente.
Os pais do Vina não existiam mais. O seu pai era falecido, também tinha sido músico, sendo o principal incentivador do filho nessa carreira, pois o saxofone que o Vina carregava, era presente do falecido pai. Sua mãe era uma prostituta, se mantinha do trabalho e era a principal atração de um bordel da zona norte do Rio. Ela nunca saíra de cartaz, até quando morreu, em 96.
O Dream vivia com a sua mãe, que era viúva. A velha era cega e quase inconsciente, o que fazia a paciência do filho se esgotar muito rápido. Ele também morava lá no prédio, por sinal, em frente ao meu apartamento, assim como o Vina. Com o Dream eu conseguia conversar mais vezes, ele parecia mais aberto a papos com mulheres, já que então ele não tinha namorada, e talvez isso pudesse ser um problema pros homens daquela época.
Depois de alguns meses trabalhando no café de Ipanema, eu conhecia perfeitamente a rotina que o Vina tinha. Era um rapaz muito responsável. Ensaiava todos os dias com o Cazuza, participava dos shows daquele grande ídolo, mas nunca conseguiu reconhecimento maior, como por exemplo: o “grande saxofonista brasileiro” ou mesmo “o saxofonista do Cazuza”, nisso o garoto não brilhava muito. Ele tinha um belíssimo talento, tocava muito bem. O som que o Vina produzia com “o seu inseparável” era de enfeitiçar, ecoava pelas ruas como sendo um som divino, enviado dos céus.
Na primavera de 87, eu fiquei sabendo que os garotos (Dream e Vina) haviam planejado um assalto. Essa ação se sucederia no apartamento de dois velhinhos, recém ganhadores de algum grande prêmio; com esse assalto os malucos queriam sair da miséria.
Realizado o assalto, sem sucesso, o Dream foi baleado com uma pistola que o velho guardava em casa. O Vina não teve nenhum ferimento e não conseguiu roubar nada dos velhos.
Na noite do assalto, o Vina voltou pro prédio sozinho. O Dream havia morrido. Foi daí que eu consegui conversar melhor com ele, e, portanto ficar sabendo dos fatos que eu acabei de relatar. Conversamos horas, até que chegou um momento que eu não agüentava mais, precisava pedir pro Vina um favor. Aquele dia era o momento ideal da minha fertilização, o que me fez transar com diversos caras, pois tinha posto na minha cabeça de querer um filho. Transando então com diversos homens, eu não saberia qual seria o pai e esse era o meu propósito. Então surgiu o meu pedido:
– Vina, eu quero transar com você! Assustado o Vina me respondeu:
– Porra Bel, nós nunca conversamos direito e quando rola um papo você me pede algo desse tipo, o que você tem na cabeça?
– Eu quero ter um filho.
– E você por acaso sabe se eu quero tê-lo também?
– Eu já transei com diversos homens hoje, não quero pai pro meu filho, quero tê-lo sozinha, só pra mim. Depois da minha resposta, tirei a blusa e empurrei-o pra cima da sua cama, que na verdade de estrutura não tinha nada, só o colchão.
No dia seguinte, eu não esperei o Sol raiar, resolvi desaparecer, mas antes eu precisava saber se havia funcionado o meu “plano” e algum daqueles espermatozóides que eu havia “colhido” no dia anterior tinha fecundado os meus óvulos. Não foi possível saber de imediato, porque era preciso dinheiro pra fazer o exame, mas eu não havia recebido o meu salário e não tinha a péssima mania de guardar dinheiro... Sim! A péssima mania de guardar dinheiro, porque pra mim dinheiro não se guarda se gasta.
Depois disso não voltei mais no prédio, a não ser numa tarde do fim do ano, pra buscar minhas coisas e cair fora. Naquela tarde encontrei com o Vina, que me recebeu com um belo sorriso no rosto, perguntando:
– Deu certo Bel?
Eu respondi que sim com o movimento da cabeça e sai, pelo grande corredor do prédio, sentindo o vento bater nos meus cabelos. Aquele foi o último momento que eu vi o Vina, mas fiquei sabendo que ele continuou tocando o sax, até quando não pôde mais por conta da velhice e morreu.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Fotografia

Hoje eu estive vendo fotografias antigas. Elas passavam por entre meus dedos e sob meus olhos, mostrando-me todas as lembranças, que durante dezessete anos eu guardo num álbum. Que saudade! Rever momentos da minha infância, saber que num piscar de olhos eu cresci, criando motivos para lutar e seguir em frente.
Nesse “estar com fotografias” uma específica me chamou bastante atenção. Nela, estava contido um momento de 95, em frente a minha casa, eu e minha mãe. Éramos mais jovens, mais livres, talvez até mais felizes. Minha mãe sorria para o fotógrafo, de certo, meu pai. Era um sorriso que além de alegria, trazia um intenso amor. Amor que nos penetra, nos faz sentir dor, mas que nos deixa livre dos perigos, pois sem saber, estamos envolvidos num grande manto de sentimento, e tudo nos faz crer que nada vai nos atingir.
A imagem trazia a minha casa como plano de fundo. Mostrava que naquele ano as estruturas arquitetônicas eram outras. As casas portavam outra aparência, respiravam outro ar; a rua apresentava-se mais arborizada, e por mais que fosse um dia ensolarado, a pessoa que passava na rua, naquele instante do clique – um homem desconhecido –, parecia satisfeito com o clima, mas também parecia satisfeito com a época, com a vida, com as pessoas. Ele não pareceu notar que pertenceria, a partir daqueles passos, a uma fotografia de desconhecidos, e que ficaria para sempre grampeado a uma lembrança, a um tempo.
Atrás de nós, na fotografia, havia um carro, que para a época, parecia bastante ousado. Não vivíamos mal, mas o que nos faltou foi medo, medo do que poderia nos vir a acontecer, medo do que poderia ter sido e não foi.
Depois dessa recordação, eu acredito que tudo passa, magnificamente, passa. Mesmo fechando os olhos e fingindo não viver, eu vivi, contei o tempo, quis voltar atrás, quis ter mais, viver tudo de novo, mas me faltou espaço, e hoje eu realmente não posso tê-lo de volta. Nunca mais!