domingo, 22 de maio de 2011

O gato verde

Houve um gato. É. Houve um gato. Ele era manso, embora soubesse parecer duro... É, mas no fim ele foi duro.
Esse gato não teve mãe, nem pai. Era um gato livre, pois também não tinha dono, mas existiam pessoas que gostavam dele. Existiam pessoas que adoravam vê-lo dormir sobre uma calçada no fim da tarde... Era um belo gato, de olhos verdes, mas não era qualquer verde... Era aquele verde de gato, sabe?
Eu conhecia-o. Eu adorava-o. Sempre quis tocá-lo, fazê-lo sentir que merecia carinho, mas parece que ele não sabia o que era isso, pois odiava quando eu o tocava, ao menos era isso que eu achava, porque, bem, ele miava ameaçadoramente. Eu sempre o achei muito bonito, muito mesmo, e tinha-o como meu, porque ele podia ficar na minha casa quando quisesse, ele era de lá...
Como a maioria dos gatos, tinha o jeito muito engraçado de dormir. Eu chamava-o de folgado quando ele fazia graça enquanto dormia... E dormia quase o tempo todo, como se fosse cansado, mas disso eu não sei.
Então, numa fim de tarde, ele estava lá. Lá, um pouco longe de mim. Mas não era o mesmo gato, nem seria mais... Ele estava deitado perto de uma entrada para o esgoto da rua, bem próximo. Eu fui chegando perto, mas já sabia o que me esperaria... Ele tremia tanto...
Alguém havia derramado leite próximo a sua boca, mas ele não bebeu, eu sei que não. O gatinho não tinha noção do que acontecia exterior a sua vermelha dor interior. Seus olhos estavam bem apertados, eram de um verde oliva de dar medo, ou dó. Ele sempre havia sido magricelo, mas vê-lo tremer daquele jeito, aquelas contrações fortes – porque eu sei que eram fortes e que doíam bastante – acontecerem por baixo de seu esqueleto visível era horrível... Ele nunca tinha comido realmente, talvez fosse por isso que havia engolido aquele veneno, porque só podia ser veneno... Certamente tinha o encontrado em meio ao monte de comida... ou não. Mas, bem, ele continuava a tremer, tremia tanto... Eu cheguei a pensar que se eu o tocasse bem de mansinho, talvez, talvez ele parasse, talvez ele se acalmasse. Mas não iria, porque ele tremeu tanto, por tanto tempo... Seus olhos já estavam vidrados, já eram olhos de morto. A única coisa viva dentro dele só podia ser a dor. A dor que o fazia se contorcer por inteiro, que o fazia levantar alguma pata, que o fazia esticar freneticamente a língua para fora. Por algum motivo sua boca estava aberta... Ah! Só podia ser muita dor, muita mesmo... Ele não parava de se tremer, de se mexer... Agora suas patas balançavam-se muito, esticavam-se e batiam-se de modo reto e rápido... Mas, embora não ficasse parado, estava muito silencioso, tão silencioso que dava para escutar o som da água suja correndo por baixo dele, tão silencioso que dava para escutar a animada música que o vizinho havia posto... Sabe? Às vezes uma bomba de festa explodia e era eu que também tremia.
Eu acho que ele já havia morrido. Eu já disse que seus olhos já pareciam ser de gente morta. Sua cabeça molhada pelo leite batia e se arranhava no chão... Eu não sei se ele estava respirando, talvez tivesse se esquecido disso em meio a tanto dor...
Não, não estava vivo. Como poderia ter aguentado tanta dor! Era tanta dor! Tremeu por tanto tempo... Será que ele morreu muito antes de parar de tremer? Será que ele escutou a música, as fortes bombas serem explodidas?
É tão triste pensar que alguém morreu desse jeito. É tão triste que ele tivesse morrido, é tão triste saber que não mais vou poder rir por causa dele numa tarde tediosa dessas que sempre existem... É tão triste que ele tivesse sofrido tanto, por tanto tempo... É tão triste que ele se calasse de tanta dor... Estava tão empoleirado... E o vi de longe. Eu vi aquele pequeno corpo não descansar, vi aquele corpinho de gato manso e de pêlo macio ficar se debatendo como se estivesse engasgado... E você sabe que é ruim estar engasgado... Mas o engasgo do gato era duradouro, e eu doentiamente me perguntava até quando ele iria sofrer, e isso me deixava muito parado - será que até amanhã de manhã? Não, não pode ser assim, é muito sofrimento, para a certeza de uma morte - porque ele sofria tanto... Ele agonizava... Seus olhos pediam piedade, ajuda, eu sei que sim, mas ele não se importou com minha presença... Ele não miou, não havia miado nem um pouco durante todo aquele sofrimento... Eu só via aquelas finas perninhas ficarem incontroláveis, batendo na areia, no concreto da boca do esgoto, em si mesmo... Ele não miou para mim como sempre fazia quando eu chegava perto... É por isso que já devia estar morto, mas olhá-lo subir a cabeça ao céu e abrir a boca era horrível... Fazia-me perguntar a mim mesmo se ele estava realmente vivo...
Às vezes eu o olhava de longe, suas orelhinhas balançando-se, sua cabeça se arranhar na areia, e ele parecia tremer menos, bem menos... Mas ainda sofria, ou era apenas seu corpo que sentia a dor, que eu sei que era como se uma agulha estivesse espetando-o no interior... Talvez estivesse todo vermelho por dentro... Era como um soluço ininterrupto, mas um soluço silencioso, que se dava pela forma e pela dor dos olhos oliva cansados...
Anoiteceu e ele continuou lá, do mesmo jeito... Acho que ele só pensa, se pensa, na hora em que essa dor vai parar, porque.... Porque é agonizante ficar daquele jeito, duro, sem força para continuar, sabendo que não vencerá, vendo que anoiteceu e nada aconteceu... Se ele estivesse vivo, tenho certeza que estaria cansado. A dor... Mas toda ela passa; é, a dele só passaria quando o corpo não pudesse sentir mais nada, e isso depois de mais de quatorze  horas...
A dor fazia com que ele se contorcesse todo, se contraísse a todo instante... Será que em algum momento ele fechará os olhos oliva ardentes de sono, força e desespero? Quando seu corpo poderá descansar?  Será que amanhã, quando eu acordar, ele continuará lá? Será que ele irá tremer para sempre em meu coração?



Por: Ítalo Héctor de Medeiros Batista

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