quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Quase Nada

Era uma tarde de Dezembro, ano de 2000, vínhamos morar ali porque estávamos fugindo do que o meu marido chamava de perseguição perigosa; completamente horrorizada acompanhei-o até perceber que aquilo era uma loucura para um ato não cometido antes daquele verão. O meu marido sempre gostou da zona rural, por mais que eu o dissesse que na cidade nós iríamos melhorar de vida, ele ainda assim teimava comigo, contrariando as minhas afirmações e conseqüentemente me convencendo que o chão vermelho e os gados poderiam nos causar bens maiores. 
Não era de se acreditar, vendo um homem forte como o meu se despedaçado de medo por conta da sua atitude erronia com o seu antigo patrão. É compreensível a suspeita que ainda houvesse alguém para nos punir, porém sempre preferi acreditar que por mais que o ato tivesse sido desonesto ele não aconteceu e isso anulava qualquer atitude ruim que se aproximasse da gente. Não foi fácil tentar convencê-lo que nada de mal iria nos prejudicar, ele sempre mostrava contrariedade quando eu tocava no assunto da tentativa de roubo dos bois, era como se o torturassem. Ficava zangado, queria me bater, mostrava pavor e impulsividade quando eu chamava-o para conversar, e na mesa da casinha de sapé, dizia:
- Homem deixe disso. Mostre sua valentia! Corra por esses pastos, vá tanger as vacas, tire o leite; esqueça a história de que o Coronel Felizardo ainda está nos controlando, este miserável já deve está morto e enterrado. Ande, vá tirar o leite das vacas!
Ele saia bravo e desordenado, trocava os pés quando ia andar. Era suplicante vê-lo cair em tal desespero sem ações ruins pára conosco existirem. Tinham dias que eu ajudava-o com a tirada do leite, nesses dias eu via o sorriso transparecer em seu rosto, mas por trás desse sorriso era capaz ver bem fundo um medo avassalador, mas um medo que não era capaz de matar uma mosca sequer. Era inofensivo, ameaçava, logo em seguida corria.
As noites que passamos nessa casinha, longe da cidade, foram noites impossíveis, nós não nos tocávamos, parecíamos estranhos um pro outro. Eu sempre procurava pôr um vestido mais novinho quando tomava banho ao entardecer, para provocar nele o desejo de irmos para cama nos amarmos. Quando eu passava minha mão gélida sobre o seu ombro, ele pousava sua mão sobre a minha mostrando um ato de irmandade, depois se deitava na esteira repousada no chão da sala, virava-se e ia dormir. Eram essas noites que eu chorava sob a meia-luz da Lua.
Passados alguns dias, nós adentramos o ano de 2001 e com essa virada eu supliquei muito que saíssemos dali, pois eu pressentia algo de ruim conosco. Não fui ouvida. Parecia que ele tinha sede de vingança, até já treinava atirar faca no tronco de uma árvore, como se fosse atirar a mesma em alguém ou mesmo no Coronel Felizardo, dono dos gados que ele meses antes pretendia roubar, mas o plano de furto não funcionou.
Foi exatamente no início do outono que eu me deparei com a morte dele. Não foi assustador, portanto não me ocasionou nenhum tipo depressão ou medo. Doeu-me muito ver meu marido morto pelas próprias mãos, depois de tomar uma super dosagem de Valeriano e morrer no celeiro onde estavam as vacas. A cartela onde estavam os 20 comprimidos ficou vazia sob a sua mão calejada e cansada de sofrer aquela condição de “quase nada”. 

sábado, 8 de outubro de 2011

O Buraco do Sol

Em algum lugar, obviamente, um homenzinho com um chapéu de vaqueiro subia numa carroça de burro todos os dias da semana para vender leite de vaca fresquinho aos compradores que há muito já eram conhecidos.
– Hum, hum.
    O tal homem de chapéu de vaqueiro morava num lugar muito esquisito no interior oeste de uma cidade grande. Era um local que mais parecia zona rural, um buraco escondido por elevações do terreno, um espaço onde a urbanização esqueceu-se de chegar. Por esta última descrição, entendamos que isso não era tão bom assim, porque quando digo “esquecido” quero praticar o eufemismo de “abandonado”. Isso mesmo. A população dali, embora certa vez um cantor de música popular tivesse aparecido num jornal local, estava perdida em meio a tantos prédios, a tanta “preocupação” com isso e aquilo, a tanta jogo de mau caráter, a tanta farsa e promessas de homens de cabelos oleosos e muita maquiagem no rosto. Você sabe em quem estou falando. Somando-se a isso, como se tivesse vestido uma armadura, aquela mesma população também havia se esquecido de si própria, desacreditada das coisas boas e “daquilo que nos é dado de mão beijada”. E para poderem se sustentar, cada homem e mulher que viviam naquele imenso buraco no interior oeste de uma cidade em desenvolvimento lutava com suas própria armas: o trabalho forçado, o trabalho não regulamentado, o trabalho não alfabetizado e, com muita fé e coragem, o trabalho “digno” – só não sei explicar digno para quem, porque, sinceramente, trabalhar, trabalhar e trabalhar para no fim morrer por causa do e sem o trabalho não é digno para ninguém!
    Descrevendo um pouco mais sobre esse estimulante lugar conhecido como “O caloroso cantinho”, embora os contentes moradores preferissem chamá-lo de “O buraco do sol”, devo prevenir-lhes que todo esse sofrimento não era percebido por nenhum dos habitantes daquele belo declive verde de montanhas marrons. Acho que eles não se davam conta ou não se importavam com o que lhes esperava.
    Mesmo não sabendo do terrível futuro incontestável, qualquer pessoa ainda ficaria muito triste por ter de trabalhar constante e forçadamente daquele jeito quase desumano que a população daquele belo espaço, onde o sol no finzinho da tarde banhava como se fosse mar, trabalhava. Eram pessoas que mesmo quando feridas – e quero deixar bem claro que saúde e hospital eram palavras desconhecidas – amanheciam logo cedo, enfrentavam um calor de rachar a pele suja, bebiam um copo com água não tratada – e esta última palavra também não fazia parte do vocabulário deles – e trabalhavam sem qualquer cuidado ou prevenção, fazendo as coisas mais desesperadas e possíveis – no limite da ignorância deles – para se ganhar dinheiro. Eram trabalhos muito parecidos com os que normalmente vimos em qualquer zona rural extremamente agarrada a raízes duras e secas; não faziam a mínima ideia do que era tecnologia ou informática; – Hum, hum. – À noite, após chegarem a suas casas, os moradores d’O Buraco [...] ainda eram lascados pelo  calor, enfurecidos por mosquitinho chatos, barulhos de bichos ou de bêbados e tantas outras condições que não me permito nem em pensar; no mínimo, para eles, era mais confortável trabalhar o dia inteiro mesmo. Ainda mais se formos levar em conta o futuro daqueles habitantes, embora eles desconhecessem a própria desgraça. No entanto, o que mais me surpreende é que mesmo assim os peculiares habitantes daquele charmoso lugar não conseguiam parar de rir sequer um minuto. Riam muito, mesmo. E eu fico pensando aqui em como eles conseguiam isso. Um dos meus mais fortes palpites é que não conseguiam imaginar em uma vida melhor, porque nunca viveram uma diferente. E a infelicidade deve ser o mesmo que inveja. Como não tinham inveja de outro tipo de vida, não eram infelizes. Mas, considerando que muitos daqueles humanos de pele e osso saiam todos os dias de sua acolhedora localidade interiorana para trabalhar vendendo seus produtos, pergunto-me como não conseguiam perceber alguma coisa diferente na vidas das outras pessoas que moravam fora do buraco onde a brisa do mar nunca chegava – e mar era outra coisa inalcançável –. Acho que simplesmente fechavam os olhos para as diferenças. Eram completamente felizes e continuavam vivos – e viver era uma palavra muito bonita –, então como podiam procurar por diferenças? Porque diferença só quem procura é a infelicidade, e esta é motivada pela inveja. Como lá não havia inveja, também não existia infelicidade, e, portanto, como isto também era desconhecido, não havia diferenças.
    Voltando ao leiteiro, num passado próximo, esse mesmo homem estava fazendo o mesmo trajeto – que como o do resto das pessoas que saiam do buraco para trabalhar, não ia tão longe do local de onde saiam –, mas com um acréscimo a mais: uma ferida na perna motivada pelo coice do burro que levava a carroça na qual o homem ia montado. O ferimento foi tratado pela mulher do homem com ervas douradas – mato queimado pelo sol – encontrado ali perto, aos pés das elevações – pequenas montanhas, diziam com o sorriso anormalmente longo.
– Tsc, tsc.
    O ferimento poderia ter ficado horrível, simplesmente perigoso para a saúde daquele velho homem de unhas sujas e chapéu desbotado de vaqueiro. Mas como tudo em “O caloroso cantinho” ou “O buraco do sol” era engraçado e anormalmente estranho, o ferimento não ficou tão feio assim. Na verdade, depois de uma hora, o tal leiteiro nem gemia de dor, e o inchaço estava quase por findar-se... É, tudo não passava de algo roxo, verde e preto, o inchaço e a dor – e só. – Bom, não me venha com leseira acreditando que o mato era milagroso. Não, não! Em outro palpite, acredito que era a humildade, a vida que levavam, a esperança e tantas outras qualidades daquele povo que faziam com que qualquer ferimento ou doença não passassem de coisas sem importância. É! Eles não davam tanta importância assim, pois “no fim tudo vai dar certo”, diziam-se esperançosa e alegremente, como sempre – e Deus sabe agir sobre aqueles que precisam.
    – Se lá existiam infelicidades? Claro que sim! Mas eram bem mais voláteis que as nossas, na verdade eram mais bonitas também. Nada que um passeio no “Caloroso cantinho do buraco do sol” pudesse ajudar. Já houve muitas lágrimas, muitos gritos desesperados lá, mas tudo era tão sério e rápido... Quase que como um suspiro gasto e forte... As infelicidades nunca haviam modificado nada daquele belo lugar, nadinha. As coisas, no fim, voltavam ao que eram antes, pois “no fim tudo vai dar certo”. 
    – Ohhh – anunciou o leiteiro a sua própria chegada para a velha compradora de seu leite. A mulher respondeu com um desesperado “Já vai!” e logo após uma criancinha vestida apenas com roupa íntima apareceu perto do portão carregando uma vasilha branca que um pouco lascada nas pontas. O leiteiro sorriu escondendo a sua falta dos dentes, embora não tivesse percebido isso, e a criança continuou olhando com sua cara indecifrável – aquela cara de criança que vê algo novo, embora a da nossa história já tivesse visto aquilo diversas vezes. O leiteiro pegou calmamente a vasilha da mão esquerda da criança, encheu a metade com leite e passou de volta com o mesmo sorriso, dessa vez mostrando os únicos três dentes da frente e as várias “janelinhas” que tinha. A criança saiu quase correndo. Quase depois, uma mulher com um lenço na cabeça, uma saliente barriga e braços molhados de sabão apareceu no fim do estreito beco para o qual o portão dava. Ela gritou “E essa sua perna, seu Pedro?”. O leiteiro, ainda sorrindo, gritou “Tudo como deveria ser! Indo calmamente!”. A mulher, talvez surpresa com a mais nova resposta engraçada do seu Pedro, soltou um sorriso como se achasse tudo engraçado e como se já não conseguisse acreditar que ainda ficava surpresa com aquele bom homem.
    Isso havia acontecido no finzinho da tarde, portanto já era hora de voltar ao “Buraco do sol”, para não perder o esplêndido espetáculo das luzes caindo sobre as montanhas...
    Era sempre mais bonito ver um pouco de longe, descendo uma imensa e alta ladeira, que era um dos três caminho mais fáceis e seguros para se chegar ao “O caloroso cantinho”. Seu Pedro ia descendo a pé mesmo, acompanhado de uns três amigos. Quase todos os dias os quatro desciam juntos para chegar a suas casas. Iam sempre conversando sobre o dia, rindo e contando piadas que ouviram em algum lugar ou que tivessem criado. Só paravam de conversar para ver uma das coisas que mais agradava em poder morar em “O buraco do sol”.
    De longe, os quatro homens viram quando as três pequenas montanhas coloridas de um marrom muito escuro foram ficando cada vez mais escuras no topo... Nos pés delas, a mata densa, fechada e verde ia se pintando de sol e tomando um frescor quando algum vento balança as mais altas árvores e os pássaros agitados pareciam ficar mais claros... Próximo à mata, a cor das montanhas mais parecia ter se tornado cor de chocolate ao leite. Na verdade, toda a montanha parecia ter se tornado uma imensa barra infindável, dava até para sentir o gostinho na pontinha da língua se espremêssemos os lábios. O calor abafado e tão agradável do dia ia sendo levado enquanto os ventos nebulosos passeavam e conversavam com o que quer que estivesse em seu caminho. Quem estreitasse os olhos poderia jurar que via o cabelo do vento esvoaçando por cima do chão, levantando poeira. Na terra laranja e marrom, os insetos começavam a cantar a serenata, lembrando-nos que há vida, há vida mesmo que o corpo seja pequeno e frágil! As estrelas todas brilhavam branco em meio ao céu ainda um pouco claro e se refletiam em seus olhos mesmo que você não as visse, porque... Porque sempre tem alguém por você.
Talvez seja esse o segredo que procuro.


Por: Ítalo Héctor de Medeiros Batista.